Parte 1: A Pintura
O sol adentrava pelo vidro empoeirado da janela,
iluminando o quarto da hospedaria com uma luz amarelada e forte. Apenas uma
janela estava com as venezianas abertas e só isso já era o suficiente para deixar
o quarto inteiro claro.
A luminosidade que ficava cada vez mais forte estava
atrapalhando o sono de Ian que, inevitavelmente, acordou incomodado. Abriu
lentamente os olhos, acostumando-os à luz do dia. Rapidamente sentiu algo
quente encostado em seu braço e levantou brevemente a cabeça para entender do
que se tratava. A jovem princesa dormia serenamente com o corpo todo encolhido
e encostado no braço dele. Ela estava deitada de lado e seu rosto estava
próximo ao seu ombro, praticamente fora da almofada. Ian riu baixinho. A
princesa havia feito drama e discutido tanto por ter de dormir na mesma cama
que um homem e agora estava praticamente agarrada nele.
Tendo cuidado para não acordar Moira, ele se
levantou da cama e a observou se acomodar bem no meio da cama, ainda
adormecida.
- Fazia tempo que eu não acordava com uma mulher
ao lado. - sussurrou para si mesmo, rindo enquanto olhava para a princesa com seu
sorriso ardiloso e vestia sua camisa negra.
Calçou as botas e saiu pela porta do quarto. O
som da porta, mesmo que não tivesse sido muito alto, acabou acordando Moira.
A jovem acordou atordoada, demorando um pouco
para se situar. Percebeu que estava no meio da cama e sozinha, mesmo que tivesse
demorado em lembrar-se de que havia dormido ao lado de Ian. Levantou-se
assustada, achando que havia sido abandonada lá. Que teria de voltar sozinha
para casa. Entretanto, quando olhou a sua volta pelo quarto, percebeu que os pertences
dele ainda estavam lá e ficou aliviada. Em parte por não ter de acordar com o
sujeito ao seu lado.
Sem muita pressa ela se levantou da cama,
espreguiçou-se e calcou as botas. Sentia sede, mas não havia água em lugar
nenhum do cômodo, como costumava ter no seu quarto no castelo. Olhou em volta,
sem saber exatamente o que estava procurando, até que seus olhos pararam na
bolsa de couro que Ian quase sempre carregava escondida debaixo de sua capa.
Estava ao lado de sua manopla com garras de metal. Ao ver aquilo depositado no
canto do quarto, sentiu uma vontade irresistível de descobrir o que havia
dentro dela. Perguntava-se o que um homem como ele poderia carregar em uma
bolsa como aquela.
Levantou-se da cama e caminhou lentamente sem
fazer barulho para a bolsa, como se alguém estivesse perto e pudesse ouvir seus
passos, e sentou-se a sua frente. O objeto não deveria ter mais de 20
centímetros de comprimento e era bastante velho e surrado. Parecia ter sido
algo bonito em algum momento de sua existência, pois possuía alguns ornamentos
desgastados e símbolos irreconhecíveis. A fivela que fechava a bolsa estava
muito velha, começando a enferrujar e o filete de cinto que atravessava a
fivela estava quase rasgando.
Sem pensar muito sobre o estilo da bolsa, Moira
desfivelou o filete com todo o cuidado e delicadamente afastou a tampa que a
cobria, abrindo-a. Primeiro ela tirou de dentro algumas folhas de papel velho e
meio amassado. Todas traziam muitas palavras escritas, mas estavam em uma
língua que a princesa jamais havia visto antes, além de terem uma caligrafia
corrida e estranha. Talvez fossem escritos da língua de Ian, apesar de que
alguém como ele saber ler seria muito intrigante, pensava a jovem princesa. Em
seguida ela puxou de dentro uma fita de cetim vermelho muito desbotado e com
uma mancha antiga e bastante escura que cobria metade do pequeno tecido. Não
sabia que importância tinha aquilo, mas parecia inútil, então deixou de lado e
continuou a busca. O objeto seguinte foi um carretel com uma linha grossa e
negra com uma agulha curva presa por entre os fios. Também deixou esse objeto
de lado. Moira puxou mais um item de dentro da bolsa. Um tecido velho todo
dobrado. Desdobrou-o, tirando de seu interior uma grande e rígida lasca cor de
marfim.
- Mas o que é isso? – não fazia ideia do porque
de um pedaço que julgava ser de algo sem importância alguma estava guardado
enrolado por um tecido - Ele só guarda objetos inúteis e sem sentido! – deixou
o item envolto no pano como estava antes e o colocou de lado.
Tateou o fundo da pequena bolsa e sentiu mais um
pequeno pedaço de papel dobrado. Puxou-o para fora e percebeu que havia algo
escrito, mas precisava desdobra-lo para ver por inteiro. Rapidamente o fez e
encontrou uma escrita em uma caligrafia redonda e mais bonita que aquela vista
nos papéis anteriores.
- Nádia. Ian. Jun. – Moira leu, sem saber o que
queria dizer, apenas entendendo que o nome do dono da bolsa estava sendo
citado.
Sem entender o motivo daquele papel, a princesa
examinou-o mais um pouco, até que decidiu virá-lo, para o lado que ficava
oculto enquanto estava dobrado. Visualizou incrédula ao que parecia ser uma
pintura antiga e desgastada de três jovens. Um deles era uma menina. Uma garota
mais ou menos da idade de seu próprio irmão, o príncipe. Ela tinha cabelos
castanhos claros, parecidos com os de Moira, só que com muito mais cachos anelados.
Seus olhos também eram azuis, apesar de serem mais escuros. Apenas a cor da
pele se diferenciava visivelmente. Era mais escura, mais bronzeada.
- Por que... ? – não sabia exatamente o que
pensar, por isso continuou analisando a estranha pintura.
O retrato sequer parecia ter sido pintado, pelo
menos Moira jamais havia visto uma pintura tão lisa e luminosa.
Voltou a observar os integrantes da figura. O
jovem da esquerda, o mais alto, só poderia ser Ian quando bem mais jovem,
também uma idade próxima a de Maxwell. Tinha o cabelo muito bagunçado e cortado
quase rente ao couro cabeludo, além de que ambos os olhos eram verdes. A
princesa se perguntou se os olhos dele realmente já chegaram a ser ambos verdes
em algum momento de sua vida. Sua pele era um pouco mais clara na imagem, quase
como a da garota. Também dava para se identificar o minúsculo pontinho abaixo
de seu olho esquerdo, uma pequena mancha de pele. Ian sorria na figura. Um
sorriso bem menos agressivo do que o que costumava fazer.
Moira finalmente colocou os olhos sobre o ultimo
menino da pintura. Não era nem tão baixo quanto a menina, nem tão alto quanto
Ian. Tinha a pele quase tão pálida quanto a da princesa, mas tanto os cabelos
quanto os olhos estreitados eram negros e seu sorriso era tímido. Por alguma
razão a jovem princesa tinha uma leve impressão de que aquele rosto lhe era
familiar, mas não deu muita atenção a sensação.
Aquela pintura havia deixado a jovem muito
confusa e desconfiada. Figuras daquele tamanho ela só havia encontrado em
livros, mas geralmente eram pintadas com aquarela e pouco se pareciam com a
realidade. A pequena imagem era realista demais. Como Ian havia conseguido algo
assim? Ao menos que conhecesse pessoalmente um pintor, Moira até então duvidava
que ele pudesse pagar por aquilo. Mas e a propriedade de refletir a luz? E por
que a menina da figura lembrava um pouco dela mesma quando mais jovem? Não se
lembrava de ter o rosto tão redondo como o da menina nem as sobrancelhas finas
e arqueadas, mesmo assim algumas características aproximavam as duas.
Separou a figura e guardou os outros objetos na
bolsa. Estava decidida em fazer Ian responder suas perguntas. Seria a primeira
atitude que Moira tomaria quando ele chegasse.
Não demorou muito para que ele retornasse. Quando
entrou pela porta trazia em uma das mãos um pedaço de pão mordido e também
mastigava algo. Esboçou um sorriso para a princesa após engolir o que estava
mastigando, entretanto, em resposta ao sorriso, Moira o fitou parecendo muito
irritada. Estava sentada na cama e de braços cruzados.
- Eu não fiz nada com Vossa Alteza que justifique
me receber com essa expressão. – respondeu tranquilamente e deu outra mordida
no pão.
- O que é isto? – tirou a foto do bolso da calça
e a desdobrou, mostrando-a para o sujeito.
- Isto é... – engoliu – Fruto da curiosidade de
uma jovem muito metida. – riu rapidamente, mas logo sua expressão ficou bem
mais séria.
Rapidamente sentou-se bem ao lado da princesa, o
que a fez reagir se afastando um pouco dele.
- Eu quero que você que responda! – falou alto e
recuou um pouco o braço para si.
- Uma imagem obtida por exposição à luz. –
agarrou o pulso dela com força – E me pertence.
- Me solte! – tentou puxar o braço, mas não
conseguiu o soltar – O que isso significa? – tentou abrir os dedos dele em
volta de seu pulso com o braço que estava livre, mas era um esforço inútil.
- Está curiosa? – inclinou-se levemente na
direção dela e a fitou – Vamos fazer um joguinho. Eu irei responder uma
pergunta sua toda vez que você responder uma minha. – o olhar assustador dele
havia voltado e estava deixando Moira nervosa.
- Não vou jogar nada com você! – afastou-se o
máximo que conseguia, mesmo com o pulso preso na mão dele.
- Então também não irei responder nada. – prendeu
o pão na boca e liberou a mão para tirar a figurada dos dedos da princesa, logo
em seguida soltando-a.
No momento em que foi solta, Moira levantou-se
rapidamente e recuou quase até o canto do quarto, assustada. Por alguns minutos
ficou em silêncio, respirando fundo para se acalmar e pensando no que fazer,
enquanto Ian terminava de comer.
- Eu aceito seu jogo. – murmurou observando o
homem cautelosamente, com medo de sua reação.
- Muito bom. Agora se sente. – bateu levemente a
palma da mão na cama.
- Vou ficar de pé. – cruzou os braços.
- Como quiser. Eu começo com as perguntas. – sua
expressão amenizou, desta vez havia voltado a sorrir.
- Por que você quem vai começar? Eu que fiz uma
pergunta primeiro! – franziu a testa, começando a se irritar.
- Eu criei as regras. – esboçou um sorriso
maldoso – Minha pergunta é: Por que você odeia o seu noivo? Mesmo antes de ele
bater no seu rosto.
- Meu rosto... – descruzou os braços e passou as
mãos sobre a face, onde havia sido agredida – Como você sabe disso?
- Vossa Alteza tem que responder a minha pergunta
antes de me fazer outra. - levantou-se da cama e buscou alguns dos itens de sua
vestimenta, logo voltando a sentar.
Moira deixou escapar um suspiro de protesto,
desde a primeira pergunta já não estava gostando nem um pouco do jogo.
- Desde que o conheci nunca gostei dele. – fitou
o chão enquanto segurava o final da trança nas mãos, enrolando nos dedos a
ponta do cabelo.
- Isso não respondeu a minha pergunta. – explicou
enquanto passava o cachecol em volta do pescoço – A verdade, Vossa Alteza.
- O que está dizendo? – cerrou os dentes e as
mãos, bufando – Quer saber a verdade?? – aumentou muito o tom da voz,
completamente transtornada – Minha mãe morreu por causa desse noivado! –
esbravejou movendo violentamente os braços – Minha pergunta agora! Quem é a
menina da pintura!??
- Ela era Nádia, minha meia-irmã. – havia baixado
o tom de voz e tinha um olhar distante, triste.
- “Era”? Ela está morta? – se acalmou um pouco,
pois teve a impressão de que, assim como ela ficara ao falar sobre a mãe, Ian
também ficava incomodado em tocar no assunto.
- Vossa Alteza já fez sua pergunta. – mais uma
vez levantou-se da cama e se dirigiu até sua bolsa e manopla, ao lado da
princesa, abaixando-se – Não temos mais tempo para perder com conversa. Temos
que seguir viagem. – vestiu a manopla na mão esquerda – E tenho uma má noticia.
- Má noticia? – afastou-se, sentia-se mais
aliviada por Ian não ter continuado o assunto, ou perguntado algo a mais sobre
sua mãe, mas ficou curiosa com o que o sujeito tinha a dizer.
- Estávamos seguindo na direção errada. – prendeu
a bolsa no cinto e o vestiu.
- Direção errada? Está dizendo que não estávamos
indo em direção a Sempterot?? – irritou-se mais uma vez, incrédula com a notícia.
- Estamos agora a mais de seis dias de seu
castelo. – vestiu a capa negra – Será melhor irmos em direção a Miraluna,
estamos mais perto de lá. – prendeu as espadas na cintura – De lá a rainha
poderá lhe mandar em uma carruagem de volta para sua cidade em um tempo bem menor.
- Quanto tempo até Miraluna? – tinha uma
expressão de desaprovação no rosto.
- Conseguimos chegar lá em três dias. – guardou a
adaga dentro do colete e pegou o arco e o estojo com as flechas.
- E por que não arranjamos cavalos!? – elevou
mais uma vez o tom de voz, cruzando os braços, emburrada.
- Vossa Alteza sabe como montar em um?
- Não... – respondeu com um pouco de
constrangimento.
- Nem eu. – riu e se aproximou dela – Vai
carregar isso aqui como punição por ter bisbilhotado os pertences alheios –
entregou nas mãos de Moira o arco e o estojo de flechas.
- Você não sabe mesmo montar em um cavalo? –
estava tão perplexa com a informação que nem havia prestado muita atenção na
ultima frase do sujeito.
- Não. – foi até a porta e a abriu – Vamos
depressa. Vossa Alteza ainda precisa comer seu dejejum. Lá embaixo. – apontou
em direção ao chão e saiu pela porta.
- Ei! Espere! Explique isso! – correu atrás dele,
levando consigo os objetos que havia recebido de Ian.
Tinham em frente mais um longo dia de caminhada e
ainda assim precisariam de pelo menos mais dois até que chegassem a Miraluna.
Isso se não houvesse distrações no caminho.
Continua...
Natalie Bear
Natalie Bear
Uia ficou com o ritmo que você deu no capítulo, gostei bastante ^^
ResponderExcluirE no geral você terminou a conversadeira deles em um bom ritmo mesmo ^^. Estava sentindo falta de um pouco de ação ^^.
Parabéns pela história ^^/
Sucesso ^^!
Se você julgou o ritmo bom o bastante para não ser cansativo demais toda a conversa então está ótimo pra mim :D! E vamos a um pouco mais de movimentação!
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